Memórias
do meu MICO
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Um gato de Vidago
Era
um Setembro quente. Estávamos em 2006. Como sempre, escolho aquela
fase do ano para revigorar forças na vila termal de Vidago.
Aproveito para o contacto com a natureza e tentar não me desprender
das minhas raízes rurais. O calor abrasador de Agosto já passou, a
agitação sazonal abrandou e aquele lugar é muito apelativo ao
descanso. Nesta época as árvores, frondosas e generosas,
oferecem-nos o prazer da sua sombra e os seus abundantes frutos.
Enfim, um conjunto de factores que convergem no sentido de qualquer
ser humano ali se sentir bem nesta altura do ano.
Logo
no dia em que cheguei, o miar desesperado e cansado a indiciar um
juvenil gato, despertou a minha atenção dada a persistência dos
seus apelos. O som provinha de um enorme emaranhado de videiras
bravas que se desenvolveram a uns cinquenta metros, num terreno que
envolve uma simples e velha casita que herdei dos meus pais. Como ia
para descansar dispus-me a neutralizar o miar do gato. De vez em
quando aproximava-me do lugar de onde vinham os seus apelos. Talvez
com receio, o felídeo calava-se dificultando, deste modo, que eu o
retirasse daquele sítio. Ficava toda a ideia que ali nascera uma
ninhada de gatos e, pelo menos um deles, passava fome. À noite a
minha mulher, admitindo que a mãe não pudesse satisfazer todas as
carências alimentares da prole colocou junto ao local uma tigela com
leite. Porém, horas a fio, o gato continuava a miar. Ao outro dia
constatámos que o recipiente do leite estava intacto. O felino
continuava a miar, mas cada vez de forma menos sonora e mais
debilitada. Estando a tigela do leite tal como foi deixada não foi
difícil concluir que a mãe teria morrido num qualquer acidente e,
provavelmente, os irmãos fisicamente mais debilitados não teriam
resistido à implacável morte por desnutrição.
Mas
o que eu, naquela altura, queria mesmo era deixar de ouvir o miar
desesperado do gato. Lembrei-me, então, de imitar o seu miar e,
devagarinho, ir-me aproximando do ninho de onde saíam as suas
súplicas. Qual o meu espanto quando vejo o gatito emergir do
emaranhado de ervas e bacelo bravo caminhando, com muita dificuldade,
na minha direcção. Peguei-o nas mãos horrorizado com o seu
aspecto: pouco maior que um telemóvel, esquelético e andrajoso!
Subi as escadas e, com ar de dó, mostrei à minha mulher o
debilitado felídio. A Eduarda, tentando amenizar o sofrimento do
miquito,
foi-lhe despejando umas colheritas de leite magro (era o que havia lá
em casa) pela garganta abaixo. Mas ele não se aguentava de pé.
Resolvemos, então, comprar na mercearia mais próxima um pacote de
leite mais nutritivo e providenciar um biberão, já em desuso, de um
neto da minha irmã Fátima. Como eu recordo a beleza desses
momentos! Foi a partir daqui que o Mico
começou a libertar-se de uma morte certa e angustiante.
Durante
aqueles dias em que por lá estivemos tratámo-lo com os cuidados
necessários a fim de que o pudéssemos deixar à sua sorte, mas numa
fase de menor dependência, umas semanas depois.
Eu
não tinha a menor experiência do que é isso de partilhar a minha
vivência com um gato. Vivo com a Eduarda num apartamento em
Ermesinde. Ambos decidimos trazê-lo para a nossa morada permanente e
levar a cabo essa experiência. Após a sempre aconselhável e
indispensável visita à clínica veterinária para os fins
convenientes, o Mico
passou a partilhar connosco a mesma habitação e ambiente familiar.
Já lá vão, mais de cinco anos!
O
que eu aprendi com ele! Ensinou-me a respeitar, muito mais, os gatos
e outros animais que não são meus. Hoje, contrariamente ao que
acontecia, não consigo ser indiferente à presença deles. Eu não
imaginava a ternura que se sente ao ver um gato mamar num simples
trapo como se espremesse a mamucha
da mãe! Observar o espreguiçar de um gato é um belo quadro! Que
delicioso é vê-lo brincar com qualquer objecto usando as patitas
como uma criança usa os pés quando joga a bola ou meneando a
cabecita em gestos engraçadíssimos, quando com ele brincamos!
Passa
infinitos minutos a tratar da sua muito peculiar higiene, lambendo
toda a região do corpo que as suas boquita e língua conseguem
atingir. Que satisfação sinto ao ver com que sofreguidão inspira o
ar da manhã quando, ao dealbar do dia, lhe abro uma nesga da
vidraça. Ao observar estes seus rotineiros comportamentos vou-me
lembrando da necessidade de lhe ir providenciando a indispensável
erva fresquinha de que ele tanto gosta e tão importante se torna
para que possa expelir todo aquele pelo diariamente ingerido.
As
suas deslocações fora da residência habitual são esporádicas.
Costumamos levá-lo para Vidago (terra da sua naturalidade) em
férias, ou simplesmente ao fim de semana. No seu habitáculo de
transporte ele viaja sereno durante um percurso de um pouco mais de
uma hora. Não abdica, nunca, de uma micção logo que entra para a
sua casota acomodada no banco traseiro da viatura. Logo que chega ao
local onde nasceu e se lhe abre a porta do automóvel o Mico é
outro: em grandes correrias efectua o reconhecimento da zona
periférica da casa saltando alegremente como uma gazela na selva
africana! No meio rural adora o contacto com a natureza, os seus sons
e odores. Nesse ambiente o Mico
desperta muito cedo e não se cala enquanto não lhe abrimos a porta
da rua (ao contrário do que acontece no seu, mais habitual, ambiente
urbano). Logo de manhã, é astuto na arte de pedir que lhe façam as
vontades: com o pescoço acaricia, ronronando, as pernas dos donos.
Quando se apanha na rua senta-se uns momentos no cimo das escadas
como que a fazer o levantamento geográfico do local onde, lá para a
noitinha, tem necessidade de voltar. Depois atravessa umas centenas
de metros de campo agrícola, no sentido de um pequeno rio que banha
a propriedade. Então, até que escureça bem, nunca ninguém mais vê
o Mico.
Quando a noite já caiu há muito e o estômago vazio começa a
desconfortá-lo, aparece junto às escadas. Pouco habituado a
conviver com pessoas estranhas, tenta certificar-se que os seus donos
não têm visitas. Depois, em grande correria, sobe as escadas, com a
patita direita desencosta a porta entreaberta, entra, roça-se nas
pernas dos donos e dirige-se ao comedouro que esvazia com grande
sofreguidão.
Nunca
o Mico
deixou de regressar a casa ainda que às vezes o faça tardiamente
provocando, não raramente, um regresso mais tardio dos seus donos à
residência urbana de Ermesinde.
Na
sua mais habitual residência o Mico
tem comportamentos diametralmente opostos aos da sua vivência no
meio rural. Nunca manifesta qualquer especial apetência para ir ao
exterior. Quando muito, se a porta do apartamento se encontra
entreaberta, desce os primeiros degraus da escada do condomínio. Mas
regressa de imediato se pressente que a porta se lhe pode fechar, ou
se vislumbra que algum estranho deambula pelas escadas! Se ouve um
qualquer toque à campainha o Mico
esconde-se de imediato apenas saindo do seu esconderijo quando se
apercebe que nenhum estranho entrou em casa, ou se entrou já
abandonou o seu lar.
O
meu Mico
faz parte indissociável das vidas humanas cá de casa. Respira o
mesmo oxigénio que nós frequentando todos os compartimentos do
apartamento. Gosta de ir à cozinha nas horas das refeições
esperando sempre que os donos partilhem com ele algo do que estão a
comer. Não sei bem porquê, mas adora hortaliça, especialmente
grelos! Porém, é incapaz de roubar da banca da loiça (seja o que
for que ali se encontre). No Verão toma, frequentemente, banho na
única banheira lá de casa onde os donos lhe disponibilizam o
equipamento exclusivo para essa higiénica tarefa. Acabou por
resignar-se a aceitar, com naturalidade, essa saudável tarefa que
lhe é ministrada e pouco própria de felídeos. Após o banho a dona
enrola-o na sua exclusiva toalha e enxuga-o. Depois coloca-o dentro
da alcofa, ao sol, na soalheira marquise. Ali, numa árdua e
infindável tarefa, ele vai acabando de secar-se. Por fim, deita-se
em pose de relaxe. Do seu corpo exala, então, o cheirinho do seu
champô e o seu pelo aveludado torna-se uma tentação para umas
carícias dos seus donos.
Como
todos os gatos, recebe mais que o que dá, mas apenas aparentemente.
Gosta de ser independente e aprecia que não o incomodem,
especialmente, quando come ou dorme. Também é exigente no asseio
que, cuidadosa e diariamente, lhe prestamos. Quando entende que a
areia do seu caixote sanitário expirou o prazo de validade, disso
nos dá conta revolvendo a mesma em tempo mais longo que o habitual.
Porém, isto é uma rotina que, quando se gosta de animais, se cumpre
com prazer.
Nos
olhos cor de prata do meu gatito existe uma luz profunda e suave, às
vezes melancólica, que faz com que o meu coração se compadeça com
todos os indefesos animais que não tiveram a sua sorte. Nesses
momentos em que o observo interrogo-me das razões que podem levar
gente insensível aos maus-tratos de tantos seres, inclusive ao seu
abandono, se tiveram a docilidade e a lealdade da sua companhia, às
vezes, por tanto tempo!
O
Mico
está, desde bebé, castrado. Como come quando e quanto quer e o
exercício físico é insignificante engordou muito. Pesa seis quilos
e meio o que é um exagero. Habituou-se a dormir no fundo da nossa
cama. No Inverno faz um túnel no cobertor que, para o efeito,
colocamos aos nossos pés e ali fica. Toda a noite, sem se mexer e
nem sequer pestanejar! Impreterivelmente, ao amanhecer põe-se a pé
à mesma hora que eu. Ronronando e de cauda hirta e içada,
acompanha-me, afagando as minhas calças, até à cozinha onde bem
sabe que lhe sirvo a primeira refeição do dia.
Depois
deixamo-lo só mas confortado até que o fim do dia chegue.
Espera-nos ansioso. Mas o nosso anseio em revê-lo não é menor.
Vendo
bem as coisas (e porque animais somos todos nós) o que eu e a minha
mulher fazemos não é mais que tentar aproveitar a oportunidade que
ele nos deu de todos sermos felizes.
O
nosso muito obrigado Mico
Floripo
Salvador
Junho 2012