segunda-feira, 3 de novembro de 2014



O Cemitério de Vidago


(Fotografia de Augusto Oliveira)
Visitamo-lo de vez em quando. Sempre que um familiar ou um simples amigo parte, lá estamos, por imperativos sociais e morais, mas também por devoção. Sentimo-nos invadidos por uma força interior muito grande que nos impele ao derradeiro acompanhamento e ao último adeus. Por isso, lá vamos! Silenciosamente, ar pesado e triste, passada lenta e certa. De vez em quando procedemos à obrigatória romagem.

Sempre a existência humana se viu confrontada com a mais radical das situações limite: a morte! Na sua relação com o Criador, a dimensão espiritual do crente vai-se manifestando em palavras e atitudes, actos e gestos. A morte é, de facto, um evento único e irrepetível na vida de cada ser humano! É, pode dizer-se, o horizonte natural da nossa existência. Independentemente da religião que professe, o homem sempre haverá de venerar os seus mortos. Sempre providenciará o seu enterramento, dignificando, consoante a sua mentalidade e também as suas posses económicas, os que desta vida vão partindo!

Quando se chega à minha idade e o cabelo começa a ficar pigarço, toma-se mais consciência da verdadeira realidade que somos e do destino que cada um de nós tem, neste mundo. Ocorre-nos mais frequentemente a incontestável ideia de que, cada dia que passa é menos um neste encontro com Deus. Neste encontro com o infinito - podemos afirmá-lo! Para muitos crentes, e não só, existe vida para além da morte. Respeitemos essa ideia! Porém, o que nos parece inquestionável é o facto de existir morte para além da vida! Mas, tudo isto está muito bem feito! Quase perfeito, diria mesmo! O avanço na idade se por um lado nos pesa (e a muitos de nós aflige porque arrasta, paulatinamente, consigo a debilidade física e a doença) confere-nos, por outro, uma faculdade maravilhosa: uma perfeita resignação ao implacável destino! Aceitamo-lo naturalmente! Isto permite-nos concluir, que Deus não dará, certamente, tudo o que pretendemos. Mas, com toda a certeza, não nos tirará tudo, também.

O avanço na idade vai-nos preparando, quase sem nos apercebermos, para tudo o que faz parte da nossa humana existência. Para a vida e também para o que poderá existir para além dela. Assim, para quem é minimamente crente a Deus, o cemitério não é um lugar muito diferente de uma sumptuosa catedral, de uma simples igreja ou de uma humilde capela. Não direi que o devamos encarar, propriamente, como a nossa residência de hoje (que é efémera) mas, talvez, como a nossa casa futura, que é eterna. Afinal não somos, todos nós, meras figuras em trânsito? Não estamos por cá, mais ou menos, a prazo? Ali constatamos a real e implacável fragilidade da condição humana. É o local próprio para serem evocadas as palavras de Fernando Pessoa, através de um dos seus heterónimos - Alexander Search: Quando, depois da lâmpada quebrada / sua luz vacilante se extinguiu / mais que luz por ela derramada / fica a lembrança do que se partiu.

No cemitério jaz sempre alguém que esgotou a vida física que tinha e a quem quisemos muito. Uma ou mais lâmpadas que nos alumiaram até ao seu limite fisiológico: o pai, a mãe, o irmão, o filho, a esposa, o marido ou, simplesmente, o amigo que eternamente recordamos! Por isso, se não sentimos propriamente alegria por visitarmos o Campo Santo somos, pelo menos, invadidos por uma sensação de grande leveza espiritual que nos conforta e estimula a ali rumar. Também, por causa disso, o Santo Lugar é uma morada como outra qualquer. Apenas definitiva!

O cemitério encerra sempre uma boa parte da história dos seus naturais e dos seus residentes, em suma, a história da sua terra. É uma parte adormecida da localidade – podemos dizê-lo! Quando transpomos o Grande Portão e deixamos que os nossos olhos vagueiem pelo granito e mármore que escaldam no tórrido Verão, ou se apresentam enregelados em manhãs de Inverno, sentimos a estranha mas agradável sensação de folhear um livro sobre a nossa terra. A maior ou menor ostentação patenteada na ornamentação das campas recorda-nos que, à superfície, o cemitério não é, propriamente, um espaço de igualdade. Mas, cada foto, cada nome e cada data forçam-nos a efectuar uma retrospectiva no tempo. A conjugação destes testemunhos traz-nos à memória infinitas recordações, mais ou menos longínquas, mas sempre nostálgicas. Quantas vezes, aqueles três factores identificativos, nos fazem lembrar alguém que, há muito, quase se alojara, inexplicavelmente, no nosso subconsciente. E, naquele momento, a nossa mente faz emergir as memórias que, de facto e desse alguém, nunca perdemos. E, então, sentimo-nos nostálgicos mas reconfortados e felizes.

Não é exagerado dizer-se que o cemitério pode ser, também, um local de reflexão. É verdade! Ali, na presença de tantos ausentes, é o espaço próprio para reflectirmos um pouco sobre os nossos comportamentos que, enquanto estamos à superfície, temos perante os outros. Tantas invejas! Tantos ódios! Às vezes, quantos atropelos e quanta maledicência! Afinal tudo acaba ali. Submerso e silencioso! Quantas vezes, neste local, quando pensamos um pouco nisso, nos questionamos: mas então, o que é o Homem? O que vale, ou não, a pena?

O Cemitério de Vidago espelha um pouco a história passada da vila. A mais antiga e também a mais recente. As inscrições que observamos gravadas nas inúmeras lápides, desde as mais visíveis, porque mais recentes, até às mais remotas (já disfarçadas pela erosão do tempo) levam-nos a viajar numa época mais ou menos distante. Depois, lembramo-nos que ali está, inerte, tanta gente! Gente que foi cumprindo o calendário das suas vidas, uns mais precocemente que outros. Gente que teve algum protagonismo social e económico na terra. Mas, também, gente mais discreta, humilde e quase anónima, mas não menos digna que a restante. E toda essa gente, de um modo ou de outro, com maior ou menor protagonismo, deu o seu generoso contributo para a história da vila. Uma história inapagável!

A edificação do Cemitério de Vidago remonta a 1890 e deveu-se, em boa parte, a substancial contribuição da família Borges, naquela altura proprietária da Farmácia Frederico. Esta família terá doado, para o efeito, terreno aos responsáveis autárquicos da época. Em contrapartida estes terão concedido à família Borges espaço para seis campas que se situariam à entrada do cemitério do lado direito. Mais tarde os descendentes da referida família terão abdicado a favor da Junta de Freguesia de três campas. Conta-se que os abastados empresários daquele tempo, João Oliveira e também Nicolau José Teixeira Alves terão contribuído, significativamente, para a edificação da obra. A preceder o Grande Portão, aquelas escassas dezenas de metros de estreita e íngreme ladeira transportam-nos a uma realidade que desejamos sempre distante, mas à qual, inevitavelmente, não fugiremos nunca.

O Cemitério de Vidago pode ser perfeitamente contemplado da parte mais elevada da vila. Mas também do seu interior se avista a parte mais significativa do aglomerado populacional num belo anfiteatro. Aposta na parte cimeira da grande laje, dali observamos a esguia, imponente e bela Torre do Coto, autêntico ex-libris da parte mais habitada da vila. Em dias de sol, o aglomerado populacional, quase compacto, da zona mais alta de Vidago apresenta-se-nos de uma beleza extraordinária. Em minha opinião, a edificação do Cemitério de Vidago naquele local foi de enorme felicidade e bom gosto dos seus promotores. Saibamos honrar a sua memória!

Floripo Salvador
Novembro 2014

Sem comentários: